A criação da Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos durante o regime militar tinha como objetivo fazer uma reconstituição dos fatos que servisse de memória para as próximas gerações. Um país cresce, precisamente, não apenas dos seus acertos, mas do reconhecimento dos seus erros.
Verdade significa uma reconstituição isenta e imparcial dos fatos que possa servir ao aprendizado que um país deve empreender de sua própria história. Qualquer parcialidade pode significar uma perda de isenção, que repercute sobre os próprios fatos que se procura reconstituir. A credibilidade está aqui em jogo.
Contudo, no início de seus trabalhos, a Comissão fez uma opção de cunho nitidamente ideológico, sinalizando para uma reconstituição parcial dos fatos, como se uma história dessa maneira recortada ainda pudesse ser chamada de história.
Optou por investigar os crimes, certamente atrozes, produzidos nos porões da ditadura militar, como assassinatos e prática de tortura. Teria dado credibilidade a si mesma e fornecido, ademais, um exemplo para a nação se tivesse conferido a mesma atenção à violência cometida pelos militantes da luta armada que tencionavam estabelecer no país uma ditadura comunista/socialista.
A Comissão faz muito bem em trazer a público, por exemplo, a tortura sofrida por mulheres, em relatos impressionantes e comovedores. Exemplos deste tipo não podem — ou não deveriam — ser jamais repetidos. A nação tem muito a aprender moralmente com esse tipo de comportamento abjeto, objeto da mais alta condenação. Abusos sexuais de mulheres são intoleráveis. Não há nada aqui que possa ser justificado.
A Comissão, por outro lado, faz muito mal em esconder do público os assassinatos, alguns com requintes de tortura, e os justiciamentos realizados pelos partidários da violência revolucionária. No que diz respeito a esses casos, haveria muito a ser feito do ponto de vista da reconstituição histórica. Foram vítimas — até hoje sem voz — de “tribunais revolucionários”. Homens e mulheres perderam a vida pela mão daqueles que queriam fazer do Brasil uma nova Cuba ou uma nova China.
Focar um fato, ocultar um outro, não é um comportamento digno de pessoas que deveriam ter, antes de tudo, um espírito público e imparcial. Não deveria ser o trabalho de militantes que procuram somente fazer passar um espírito de cunho ideológico. Os ditos opositores armados do regime militar eram liberticidas, em muito diferentes dos opositores democratas que, na época, estavam agregados e unidos no então MDB. Não faz o menor sentido apresentá-los como defensores da democracia e da liberdade.
Ademais desse viés claramente ideológico, a Comissão pouco tem avançado no descobrimento de novos fatos, procurando desviar o foco para um questionamento da Lei da Anistia. A sua incompetência histórica está se traduzindo por posições militantes. Parece haver, na Comissão, uma maioria barulhenta que tem como objetivo capturar a atenção de formadores de opinião.
A Lei da Anistia foi, na época, fruto de um amplo esforço de pacificação nacional, envolvendo os partidários do regime e a oposição, com a participação de entidades importantes da sociedade civil como a OAB. Militares insatisfeitos com o regime, opositores democratas que procuravam estabelecer o Estado sobre novas bases, e, mesmo, membros do partido no Poder se uniram tendo como objetivo fazer com que a sociedade brasileira seguisse um novo caminho.
Foi um grande esforço de reconciliação nacional, em uma transição pacífica, que fez com que o Brasil pudesse recomeçar sem nenhum tipo de revanchismo. Um peremptório não foi dito a todas as formas de violência, de modo que o país pudesse vislumbrar o futuro, sem retroceder aos problemas do passado.
No momento em que a anistia teve lugar, os dois lados, por assim dizer, foram igualmente perdoados. Os fatos foram certamente graves e é precisamente por isto que uma anistia foi necessária. Se fossem atrocidades menores, talvez um ato desse tipo nem tivesse ocorrido. O perdão existe na vida de cada um e no espaço propriamente político para que um recomeço seja possível. E o país recomeçou sem precisar ter o seu andar preso no passado.
O mais curioso é que alguns membros da Comissão da Verdade costumam oferecer o exemplo de outros países latino-americanos, com o intuito de mostrar que fizeram o que nosso país deveria ter feito, ou seja, abolir a Lei da Anistia. Basta ver o resultado de países como a Argentina, em ritmo acelerado para o abismo, debatendo-se sempre com um passado não resolvido. Vive no presente as agruras do passado, sem poder vislumbrar o futuro.
Ainda recentemente o STF revalidou a Lei da Anistia, decidindo por sua plena validade, com uma posição que se caracterizou por sua clareza e por seu espírito republicano. Diante dos defensores do retrocesso, deixou manifesto que nenhuma volta atrás seria tolerada.
No entanto, surpreendentemente, alguns membros da Comissão da Verdade teimam em desconhecer a decisão do Supremo, clamando por sua revisão, como se o país devesse voltar para um passado de contenciosos intermináveis. Uma nação presa a um passado irreconciliado não tem condições de prosperar.
O que esses membros militantes da Comissão da Verdade estão procurando fazer é criar condições junto à opinião pública para que o Supremo se sinta pressionado e volte atrás de sua posição. De fato, estão em pleno processo de proselitismo político, extrapolando as finalidades mesmas de criação dessa Comissão.
Não apenas estão sendo parciais na reconstituição histórica, como procuram produzir na sociedade brasileira uma fratura, que a colocaria em luta consigo mesma. Se o perdão interveio foi para que o país pudesse se reconciliar consigo. A verdade histórica pode ser um instrumento dessa reconciliação, por mais dolorosos que sejam os fatos apresentados. Ela não pode ser substituída por um retrocesso institucional.