Virtudes NacionaisOlavo de Carvalho
Que eu saiba, nenhuma acusação de tortura pesa ou pesou jamais
contra aqueles oficiais atacados na porta do Clube Militar.
Platão
já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais
abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria
capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. Trezentos
jovens insultando duas dúzias de octogenários – eis a imagem daquilo que, no
Brasil de hoje, se considera um exemplo de coragem cívica.
É
possível descer ainda mais baixo? É. Nenhum dos agressores se lembrou sequer de
perguntar se algum daqueles velhos, a quem cobriam de cusparadas, xingamentos e
ameaças, esteve pessoalmente envolvido nos episódios de tortura que lhes eram
ali imputados, ou se o único crime deles não consistia em puro delito de
opinião.
Que
eu saiba, nenhuma acusação de tortura pesa ou pesou jamais contra aqueles
oficiais atacados na porta do Clube Militar. O único acusado, o coronel
Brilhante Ustra, não estava presente e foi queimado em efígie. Os outros pagaram
pelo crime de achar que Ustra é inocente, que o governo militar foi melhor do
que a alternativa cubana ou que as violências praticadas por aquele regime pesam
menos do que as suas realizações. Por isso, e só por isso, foram chamados de
assassinos e torturadores.
Não
apenas a "coragem" é o nome que hoje se dá à covardia mais sórdida, mas o "senso
de justiça" consiste em acusar a esmo, sem ter em conta a diferença que vai
entre aplaudir um regime extinto e ter praticado crimes em nome dele.
Se
o simples fato de avaliar positivamente um governo suspeito de tortura faz do
cidadão um torturador, então os arruaceiros reunidos na porta do Clube Militar,
bem como o seu instigador, o cineasta Sílvio Tendler, são todos torturadores, e
o são em muito maior escala do que qualquer militar brasileiro, pelo apoio
risonho e cúmplice que, uns mais, outros menos, por ações e omissões, têm dado a
regimes incomparavelmente mais cruéis do que jamais o foi a nossa ditadura.
Essa
observação aplica-se especialmente, e da maneira mais literal possível, aos
militantes do PC do B, a organização mais representada naquele espetáculo. É o
partido maoísta, nascido e crescido no culto a um monstro genocida, estuprador e
pedófilo, campeão absoluto de assassinatos em massa, que se zangou com a URSS
por achar que o governo de Moscou não era violento e cruel à altura do que o
exigiam os padrões da revolução mundial.
Por
todas as normas do direito internacional, a lealdade retroativa a um regime
reconhecidamente genocida é crime contra a humanidade. A carga dessa culpa
imensurável é a única autoridade moral com que a massa de jovens revoltadinhos
se apresenta ante os oficiais das nossas Forças Armadas, acusando-os de crimes
que talvez alguns de seus colegas de farda tenham cometido, mas que eles
próprios jamais cometeram.
O
sr. Silvio Tendler diz que sua mãe foi torturada. É possível. Mas isso dá a ele
o direito de instigar uma multidão de cabeças ocas para que acusem de tortura
qualquer saudosista do regime militar que encontrem pela frente? Não entende,
esse pretenso intelectual, a diferença entre crime de tortura e delito de
opinião?
Opinião por opinião, pergunto eu: os méritos e deméritos do
regime militar brasileiro já foram examinados com isenção e honestidade, em
comparação com a alternativa comunista que suas pretensas vítimas lutavam para
implantar no Brasil? Os brasileiros que, exilados ou por vontade própria, se
colocaram a serviço dos regimes de Havana e de Pequim não se acumpliciaram com
uma violência ditatorial incomparavelmente mais assassina do que aquela contra a
qual agora esbravejam histericamente? Ou será que os cadáveres de cem mil
cubanos, dez mil angolanos e setenta milhões de chineses, assassinados com o
apoio dessa gente, pesam menos que os de algumas dezenas de terroristas
brasileiros?
Havana,
é verdade, fica longe, Luanda fica ainda mais longe, a China então nem se fala,
e o Doi-Codi fica logo ali. Mas desde quando a gravidade dos crimes é medida
pela razão inversa da distância em que foram cometidos?
Também
é fato que os mortos de Cuba, de Angola e da China nunca foram manchete no
Brasil, mas devemos acreditar, a sério, que a extensão do mal é determinada
objetivamente pelo escarcéu jornalístico concedido a umas vítimas e negado a
outras por simpatizantes ideológicos das primeiras?
Essas perguntas, bem
sei, não se fazem. Não são de bom tom. Mas, na dissolução geral da própria ideia
das virtudes, que senso do bom-tom poderia sobreviver num país cujo presidente
se gaba, veraz ou falsamente, de haver tentado estuprar um companheiro de cela,
e ainda diz ter saudades do tempo em que os meninos da sua região natal faziam
sexo com cabritas e jumentas, se é que faziam mesmo e não foi ele próprio quem
os inventou à imagem e semelhança da sua imaginação perversa? E será preciso
lembrar que essa mesma criatura, indiciada em inquérito pelo maior esquema de
corrupção de que já se teve notícia nesse país, reagiu com um sorriso cínico,
alegando-se protegida não pela sua inocência, que nunca existiu, mas pela
lentidão da Justiça?
Será
exagero, será insulto criminoso chamar de cafajeste o homem capaz de fazer essas
declarações em público? E será insana conjetura suspeitar que esses e outros
tantos exemplos da cafajestada oficial, copiados por milhares de incelenças,
louvados em prosa e verso por uma legião de sicofantas, repassados com orgulho
do alto das cátedras, transfigurados por fim em "valores culturais" e aceitos
com sorrisos de complacência entre paternal e servil pelas nossas "classes
dominantes", criaram o modelo de coragem e justiça que hoje inspira os bravos
agressores de anciãos?
Publicado no Diário do Comércio.