48º ANIVERSÁRIO DO MOVIMENTO CÍVICO-MILITAR DE 31 MAR 1964
Militares e
a Memória Nacional
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Olavo de Carvalho |
Como
todos os meninos da escola na minha época, eu não podia cantar o Hino Nacional
ou prestar um juramento à bandeira sem sentir que estava participando de uma
pantomima. A gente ria às escondidas, fazia piadas, compunha paródias
escabrosas.
Os
símbolos do patriotismo, para nós, eram o supra-sumo da babaquice, só igualado,
de longe, pelos ritos da Igreja Católica, também abundantemente ridicularizados
e parodiados entre a molecada, não raro com a cumplicidade dos pais. Os
professores nos repreendiam em público, mas, em segredo, participavam da
gozação geral.
Cresci,
entrei no jornalismo e no Partido Comunista, freqüentei rodas de intelectuais.
Fui
parar longe da atmosfera da minha infância, mas, nesse ponto, o ambiente não
mudou em nada: o desprezo, a chacota dos símbolos nacionais eram idênticos
entre a gente letrada e a turminha do bairro.
Na
verdade, eram até piores, porque vinham reforçados pelo prestígio de atitudes
cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande Graciliano Ramos, glória do
Partidão, não escrevera que o Hino era "uma estupidez"?
Mais
tarde, quando conheci os EUA, levei um choque. Tudo aquilo que para nós era uma
palhaçada hipócrita os americanos levavam infinitamente a sério.
Eles
eram sinceramente patriotas, tinham um autêntico sentimento de pertinência, de
uma raiz histórica que se prolongava nos frutos do presente, e viam os símbolos
nacionais não como um convencionalismo oficial, mas como uma expressão
materializada desse sentimento.
E
não imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar social. Mesmo
pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos, orgulhosamente
americanos, e, em vez de ter raiva da pátria porque ela os tratava mal,
consideravam que os seus problemas eram causados apenas por maus políticos que
traíam os ideais americanos.
Correspondi-me
durante anos com uma moça negra de Birmingham, Alabama. Ali não era bem o lugar
para uma moça negra se sentir muito à vontade, não é mesmo?
Mas
se vocês vissem com que afeição, com que entusiasmo ela falava do seu país! E
não só do seu país: também da sua igreja, da sua Bíblia, do seu Jesus. Em
nenhum momento a lembrança do racismo parecia macular em nada a imagem que ela
tinha da sua pátria.
A
América não tinha culpa de nada. A América era grande, bela, generosa. A
maldade de uns quantos não podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar de matava
de vergonha.
Se
alguém no Brasil dissesse essas coisas, seria exposto imediatamente ao
ridículo, expelido do ambiente como um idiota-mor ou condenado como reacionário
um integralista, um fascista.
Só
dois grupos, neste país, falavam do Brasil no tom afetuoso e confiante com que
os americanos falavam da América.
O
primeiro era os imigrantes: russos, húngaros, poloneses, judeus, alemães,
romenos. Tinham escapado ao terror e à miséria de uma das grandes tiranias do
século (alguns, das duas), e proclamavam, sem sombra de fingimento: "Este
é um país abençoado!" Ouvindo-nos falar mal da nossa terra, protestavam:
"Vocês são doidos. Não sabem o que têm nas mãos".
Eles
tinham visto coisas que nós não imaginávamos, mediam a vida humana numa outra
escala, para nós aparentemente inacessível. Falávamos de miséria, eles
respondiam: "Vocês não sabem o que é miséria".Falávamos de ditadura,
eles riam: "Vocês não sabem o que é ditadura".
No
começo isso me ofendia. "Eles acham que sabem tudo", dizia com meus
botões. Foi preciso que eu estudasse muito, vivesse muito, viajasse muito, para
entender que tinha razão, mais razão do que então eu poderia imaginar.
A
partir do momento em que entendi isso, tornei-me tão esquisito, para meus
conterrâneos como um estoniano ou húngaro, com sua fala embrulhada e seu
inexplicável entusiasmo pelo Brasil, eram então esquisitos para mim.
Digo,
por exemplo, que um país onde um mendigo pode comer diariamente um franco
assado por dois dólares é um país abençoado, e as pessoas querem me bater.
Não
imaginam o que possa ter sido sonhar com um frango na Rússia, na Alemanha, na
Polônia, e alimentar-se de frangos oníricos.
Elas
acreditam que em Cuba os frangos dão em árvores e são propriedade pública.
Aqueles velhos imigrantes tinham razão: o brasileiro está fora do mundo, tem
uma medida errada da realidade.
O
outro grupo onde encontrei um patriotismo autêntico foi aquele que, sem
conhece-lo, sem saber nada sobre ele exceto o que ouvia de seus inimigos, mais
temi e abominei durante duas décadas: os militares.
Caí
no meio deles por mero acaso, por ocasião de um serviço editorial que prestava
para a Odebrecht que me pôs temporariamente de editor de texto de um volumoso
tratado O Exército na História do Brasil.
A
primeira coisa que me impressionou entre os militares foi sua preocupação
sincera, quase obsessiva, com os destinos do Brasil.
Eles
discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse em mãos a responsabilidade
pessoal de resolvê-los. Quem os ouvisse sem saber que eram militares teriam a
impressão de estar diante de candidatos em plena campanha eleitoral, lutando
por seus programas de governo e esperando subir nas pesquisas junto com a
aprovação pública de suas propostas.
Quando
me ocorreu que nenhum daqueles homens tinha outra expectativa ou possibilidade
de ascensão social senão as promoções que automaticamente lhes viriam no quadro
de carreira, no cume das quais nada mais os esperava senão a metade de um
salário de jornalista médio percebi que seu interesse pelas questões nacionais
era totalmente independente da busca de qualquer vantagem pessoal.
Eles
simplesmente eram patriotas, tinham o amor ao território, ao passado histórico,
à identidade cultural, ao patrimônio do país, e consideravam que era do seu
dever lutar por essas coisas, mesmo seguros de que nada ganhariam com isso
senão antipatias e gozações.
Do
mesmo modo, viam os símbolos nacionais - o hino, a bandeira, as armas da
República - como condensações materiais dos valores que defendiam e do sentido
de vida que tinham escolhido. Eles eram, enfim, "americanos" na sua
maneira de amar a pátria sem inibições.
Procurando
explicar as razões desse fenômeno, o próprio texto no qual vinha trabalhando me
forneceu uma pista.
O
Brasil nascera como entendida histórica na Batalha dos Guararapes, expandira-se
e consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas militares e
alcançara pela primeira vez, um sentimento de unidade autoconsciente por
ocasião da Guerra do Paraguai, uma onda de entusiasmo patriótico hoje dificilmente
imaginável.
Ora,
que é o amor à pátria, quando autêntico e não convencional, senão a recordação
de uma epopéia vivida em comum?
Na
sociedade civil, a memória dos feitos históricos perdera-se, dissolvida sob o
impacto de revoluções e golpes de Estado, das modernizações desaculturantes,
das modas avassaladoras, da imigração, das revoluções psicológicas introduzidas
pela mídia.
Só
os militares, por força da continuidade imutável das suas instituições e do seu
modo de existência, haviam conservado a memória viva da construção nacional.
O
que para os outros eram datas e nomes em livros didáticos de uma chatice sem
par, para eles era a sua própria história, a herança de lutas, sofrimentos e
vitórias compartilhadas, o terreno de onde brotava o sentido de suas vidas.
O
sentimento de "Brasil", que para os outros era uma excitação
epidérmica somente renovada por ocasião do carnaval ou de jogos de futebol (e
já houve até quem pretendesse construir sobre essa base lúdica um grotesco
simulacro de identidade nacional), era para eles o alimento diário, a
consciência permanentemente renovada dos elos entre passado, presente e futuro.
Só
os militares eram patriotas porque só os militares tinham consciência da
história da pátria como sua história pessoal.
Daí
também outra diferença. A sociedade civil, desconjuntada e atomizada, é
anormalmente vulnerável a mutações psicológicas que induzidas do Exterior ou
forçadas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas apagam do dia para a
noite a memória dos acontecimentos históricos e falseiam por completo a sua
imagem do passado.
De
uma geração para outra, os registros desaparecem, o rosto dos personagens é
alterado, o sentido todo do conjunto se perde para ser substituído, do dia para
a noite, pela fantasia inventada que se adapte melhor aos novos padrões de
verossimilhança impostos pela repetição de slogans e frases-feitas.
Toda
a diferença entre o que se lê hoje na mídia sobre o regime militar e os fatos
revelados no site de Ternuma vem disso. Até o começo da década de 80, nenhum
brasileiro, por mais esquerdista que fosse, ignorava que havia uma revolução
comunista em curso, que essa revolução sempre tivera respaldo estratégico e
financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia atravessado maus bocados em 1964 e
tentara se rearticular mediante as guerrilhas, sendo novamente derrotada.
Mesmo
o mais hipócrita dos comunistas, discursando em favor da
"democracia", sabia perfeitamente a nuance discretamente subentendida
nessa palavra, isto é, sabia que não lutava por democracia nenhuma, mas pelo
comunismo cubano e soviético, segundo as diretrizes da Conferência
Tricontinental de Havana.
Passada
uma geração tudo isso se apagou. A juventude, hoje, acredita piamente que não
havia revolução comunista nenhuma, que o governo João Goulart era apenas um
governo normal eleito constitucionalmente, que os terroristas da década de 70
eram patriotas brasileiros lutando pela liberdade e pela democracia.
No
Brasil, a multidão não tem memória própria. Sua vida é muito descontínua,
cortada por súbitas mutações modernizadoras, não compensadas por nenhum
daqueles fatores de continuidade que preservava a identidade histórica do meio
militar.
Não
há cultura doméstica, tradições nacionais, símbolos de continuidade familiar. A
memória coletiva está inteiramente a mercê de duas forças estranhas: a mídia e
o sistema nacional de ensino.
Quem
dominar esses dois canais mudará o passado, falseará o presente e colocará o
povo no rumo de um futuro fictício.
Por
isso o site de Ternuma é algo mais que a reconstituição de detalhes omitidos
pela mídia.
É
uma contribuição preciosa à reconquista da verdadeira perspectiva histórica de
conjunto, roubada da memória brasileira por manipuladores maquiavélicos,
oportunistas levianos e tagarelas sem consciência.
Perguntam-me
se essa contribuição vem dos militares ?
Bem,
de quem mais poderia vir ?
Olavo
de Carvalho - Filósofo e Cientista Político
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