Texto de Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
(Imagens inseridas pelo Blog)
Doutora, eu procurei a psicanálise porque ando com um estranho sintoma: estou com o que vocês chamam de 'sentimento de culpa'... Tive essa ideia quando vi aquele seriado na TV, Os Sopranos, com o chefão da Máfia de New Jersey chorando para uma psicanalista de lindas pernas. Como a senhora...
Tenho tido pesadelos: sonho que morri assassinado por mim mesmo, que estou
preso com traficantes estupradores. Não mereço isso, eu, que sempre assumi minha
condição de corrupto ativo e passivo... (sem veadagem... claro).
Não sou um ladrão de galinhas, mas já roubei galinhas do vizinho e até hoje sinto o cheiro das penosas que eu agarrava. Há há há... Mas hoje em dia, doutora, não roubo mais por necessidade; é prazer mesmo. Estou muito bem de vida, tenho sete fazendas reais e sete imaginárias, mando em cidades do Nordeste, tenho tudo, mas confesso que sou viciado na adrenalina que me arde no sangue na hora em que a mala preta voa em minha direção, cheia de dólares, vibro quando vejo os olhos covardes do empresário me pagando a propina, suas mãos trêmulas me passando o tutu, delicio-me quando o juiz me dá ganho de causa, ostentando honestidade e finge não perceber minha piscadela marota na hora da liminar comprada (está entre 30 a 50 mil dólares, hoje), babo ao ver juízes sabujos diante de meu poder de parlamentar e fazendeiro rico.
Como, doutora? Se me sinto superior assim? Bem, é verdade... Adoro a
sensação de me sentir acima dos otários que me 'compram', eles se humilhando em
vez de mim. Roubar me liberta. Eu explico: roubar me tira do mundo dos
'obedientes' e me provoca quase um orgasmo quando embolso uma bolada.
Desculpe... a senhora é mulher fina, coisa e tal, mas, adoro sentir o espanto de
uma prostituta, quando eu lhe arrojo mil dólares sobre o corpo e vejo sua
gratidão acesa, fazendo-a caprichar em carícias mais perversas.
É uma delícia, doutora, rolar, nu, em cima de notas de cem dólares na cama,
de madrugada, sozinho, comendo chocolatinhos do frigobar de um hotel vagabundo,
em uma cidade onde descolei a propina de um canal de esgoto superfaturado. Gosto
da doce volúpia de ostentar seriedade em salões de caretas que te xingam pelas
costas, mas que te invejam pela liberdade cínica que te habita. Suas mulheres me
olham excitadas, pensando nos brilhantes que poderiam ganhar de mim, viril e
sorridente - todo bom ladrão é simpático. A senhora não tem ideia, aí, sentada
nessa poltrona do Freud, do orgulho que sinto, até quando roubo verbas de
remédios para criancinhas, ao conseguir dominar a vergonha e transformá-la na
bela frieza que constrói o grande homem. E, agora, este sentimentozinho de
'culpa' tão chato...
Sei muito bem os gestos rituais da malandragem brasileira: sei fazer
imposturas, perfídias, tretas, sei usar falsas virtudes, ostentar dignidade em
CPIs, dou beijos de Judas, levo desaforo para casa sim, sei dar abraços de
tamanduá e chorar lágrimas de crocodilo... Sou ótimo ator e especialista em
amnésias políticas. Eu já declarei de testa alta na Câmara: 'Não sei nem imagino
como esses milhões de dólares apareceram em minha conta na Suíça, apesar destes
extratos todos, pois não tenho nem nunca tive conta no exterior!' Esse grau de
mentira é tão íntegro que deixa de ser mentira e vira uma arte.
Doutora, no Brasil há dois tipos de ladrões de colarinho-branco: há o
ladrão 'extensivo' e o 'intensivo'.
Eu, não. Eu sou cordial, um cavalheiro; tenho paciência e sabedoria, comecei pouco a pouco, como as galinhas que roubei na infância, que de grão em grão enchiam o papo... Eu sou aquele que vai roubando ao longo da vida política e, ao fim de décadas, já tem Renoirs na parede, iates, helicópteros, esposas infelizes (não sei por que, se dou tudo a ela), filhos estroinas e malucos... (mandei estudar na Suíça e não adiantou).
Eu adquiri uma respeitabilidade altaneira que confunde meus inimigos, que
ficam na dúvida se me detestam ou admiram. No fundo, eu me acho mesmo especial;
não sou comum.
Perto de mim, homens como PC foram meros cleptomaníacos... Sou profissional
e didático... Considero-me um Gilberto Freyre da corrupção nacional...
Olhe para mim, doutora. Eu estou no lugar da verdade. Este País foi feito
assim, na vala entre o público e o privado. Há uma grandeza insuspeitada na
apropriação indébita, florescem ricos cogumelos na lama das maracutaias. A bosta
não produz flores magníficas? O que vocês chamam de 'roubalheira', eu chamo de
'progresso'. Não o frio progresso anglo-saxônico, mas o doce e lento progresso
português que formou nossa tolerância, nossa ambivalência entre o público e o
privado.
Eu sempre fui muito feliz... Sempre adorei os jantares nordestinos, cheios
de moquecas e sarapatéis, sempre amei as cotoveladas cúmplices quando se liberam
verbas, os cálidos abraços de famílias de máfias rurais... A senhora me pergunta
por que eu lhe procurei?
Tudo bem; vou contar.
Outro dia, fui assistir a uma execução. Mataram um neguinho no terreno
baldio. Ele implorava quando lhe passaram o fio de náilon no pescoço e apertaram
até ele cair, bem embaixo de uma placa de financiamento público. Na hora, até me
excitei; mas quando cheguei em casa, com meus filhos vendo High School Musical
na TV, fui tomado por este mal-estar que vocês chamam de 'sentimento de
culpa'...
Por isso, doutora, preciso que a senhora me cure logo... Tem muita verba
pública aí, muita emenda no orçamento, empreiteiros me ligando sem parar...
Tenho de continuar minha missão, doutora...
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