Causas Sagradas
Olavo de Carvalho
Diário do 
Comércio, 17 de janeiro de 2012 
É um impulso natural do ser humano evadir-se da 
estreiteza da rotina pessoal e familiar para aventurar-se no universo mais amplo 
da História, onde sente que sua vida se transcende e adquire um “sentido” 
superior. A maneira mais banal e tosca de fazer isso, acessível até aos 
medíocres, incapazes e pilantras, é a militância num partido ou numa “causa”, 
isto é, em algum egoísmo grupal embelezado de palavras pomposas como 
“liberdade”, “igualdade”, “justiça”, “patriotismo”, “moralidade” ou “direitos 
humanos”. Essas palavras podem representar algum valor substantivo, mas não 
quando o indivíduo adquire delas todo o valor que possa ter, em vez de 
preenchê-las com sua própria substância pessoal. A mais criminosa ilusão da 
modernidade foi persuadir os homens de que podem enobrecer-se mediante a 
identificação com uma “causa”, quando na verdade todas as causas, enquanto nomes 
de valores abstratos, só adquirem valor concreto pela nobreza dos homens que a 
representam. O fundo da degradação se atinge quando algumas “causas” são tão 
valorizadas que parecem infundir virtudes, automaticamente, em qualquer 
vagabundo, farsante ou bandido que consinta em representá-las. A palavra mesma 
“virtude” provém do latim vir, viri, que significa “varão”, 
designando que é qualidade própria do ser humano individual e não de idéias 
gerais abstratas, por mais lindos e atraentes que soem os seus nomes.
Não há 
maior evidência disso do que o próprio cristianismo, o qual, antes de ser um 
“movimento”, uma “causa”, uma instituição ou mesmo uma doutrina, foi uma pessoa 
de carne e osso, a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, da qual, e unicamente da 
qual, tudo o que veio depois na história da Igreja adquire qualquer validação a 
que possa aspirar. 
Quando tomada como medida máxima ou única de aferição do 
bem e do mal, a “causa” adquire o prestígio das coisas sagradas e se torna 
objeto de alienação idolátrica. Ora, em maior ou menor medida isso acontece com 
todas, absolutamente todas as causas políticas, sociais e econômicas do mundo 
moderno, sem exceção. O comunismo, o fascismo, o feminismo, a negritude, o 
movimento gay, às vezes o próprio o liberalismo ou, em escala menor e 
local, o petismo, não admitem virtude maior que a de aderir à sua causa, nem 
pecado mais hediondo que o de combatê-la. Para os militantes, “bom” é quem está 
do seu lado, “mau” quem está contra. É um julgamento de última instância, contra 
o qual não se pode alegar, nem como atenuante, qualquer valor mais universal 
encarnado numa pessoa concreta. Embora todos esses movimentos sejam 
historicamente localizados, não fazendo sentido fora de um estrito limite 
cronológico, os julgamentos morais baseados neles vêm com uma pretensão de 
universalidade atemporal, abolindo até mesmo o senso da relatividade cultural: 
para as feministas enragées, a autoridade do macho é odiosa em qualquer 
época, mesmo naquelas em que a dureza das condições econômicas, os perigos 
naturais e a ameaça das guerras constantes tornavam impensável qualquer 
veleidade de igualitarismo sexual.
Mais ainda: o esforço desenvolvido em 
público a favor da “causa” é um critério tão absoluto e definitivo de 
julgamento, que, uma vez atendido, dispensa o indivíduo de praticar na sua vida 
pessoal as próprias virtudes que o movimento diz representar. Alegar, por 
exemplo, que Karl Marx instaurou em casa a mais rígida discriminação de classe, 
excluindo da mesa da família o filho ilegítimo que tivera com a empregada, é 
considerado um “mero” argumentum ad hominem que nada prova contra o valor 
excelso da “causa” marxista. Do mesmo modo, o sr. Luiz Mott é louvado por seu 
combate em favor do casamento gay, embora se gabe de ter ido para a cama 
com mais de quinhentos homens, isto é, de não ter o mínimo respeito pela 
instituição do casamento, seja hetero, seja homo. Mutatis mutandis, as 
mais óbvias virtudes pessoais do adversário tornam-se irrelevantes ou 
desprezíveis em comparação com o fato de que ele está “do lado errado”. 
Moralmente falando, Francisco Franco, Charles de Gaule ou Humberto Castelo 
Branco, homens de uma idoneidade pessoal exemplar, foram infinitamente 
superiores a Fidel Castro ou Che Guevara, assassinos em série de seus próprios 
amigos, isto para não falar de Mao Dzedong, estuprador compulsivo. Mas qual 
comunista admitiria enxergar nesse detalhe um sinal, mesmo longínquo, de que a 
nobreza da causa que defende talvez não seja tão absoluta quanto lhe parece? 
Mesmo as virtudes dos mártires e dos santos nada significam, em comparação com 
um alto cargo no Partido.
Quando digo que esse fenômeno traduz a sacralização 
do contingente e do provisório, não estou fazendo figura de linguagem. Mircea 
Eliade, e na esteira dele praticamente todos os historiadores da religião, 
definem o “sagrado” como tudo aquilo a que se atribui um valor último, uma 
autoridade julgadora soberana e insuperável, imune, por sua vez, a todo 
julgamento. Na medida em que tomam a adesão ou rejeição à sua causa como 
critério derradeiro e irrecorrível de julgamento das condutas humanas, os 
movimentos a que me referi acima se tornam caricaturas grotescas da religião e 
da moralidade, e por sua simples existência já produzem a degradação moral da 
espécie humana ao nível da simples criminalidade politicamente oportuna. 

 
 
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