22 de dez. de 2010


A conjugação do verbo rapio
          Este é um repeteco do publicado no Valequasetudo número 13, de junho de 2006. São excertos do atualíssimo Sermão do Bom Ladrão, ou, se preferirem, o Mensalão do Padre Vieira.
          Diz o Padre Antonio Vieira, em seu sermão que ficou conhecido como Sermão do bom ladrão, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no Ano de 1655:
          (...) Encomendou el-rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia (...) E o que o Santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos. (...) Nicolau de Lira, declarando a etimologia de Sátrapas, que eram os governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio (...) Chamam-se sátrapas, porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que, não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém (olha o Brasil aí, gente, já no século XVII!), se usa igualmente a mesma conjugação.
          Conjugam por todos os modos o verbo rapio; porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e exquisitos. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhe apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despòticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as cousas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto, nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. 
          Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras, quantas para isso têm indústria e consciência.
          Furtam juntamente por  todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triénio; e para incluirem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramcnte ; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído, e não caído lhe vem a cair nas mãos.
          Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais que perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse.
          Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz activa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas, e consumidas.

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