17 de fev. de 2012

FICHA LIMPA

16/02/2012

Reinaldo Azevedo

Além de não moralizar a política, como querem alguns, joga no lixo fundamentos da ordem democrática

Serei, com muito gosto, “contramajoritário”. Vocês sabem que isso, pra mim, não chega a ser uma novidade. Vamos lá.

Ninguém pode ser considerado culpado enquanto couber recurso à Justiça. Atenção! É legítimo discutir se há ou não recursos demais; é legítimo debater se o Judiciário é ou não muito lento; é legítimo indagar se não há dispositivos legais em excesso que acabam protegendo os criminosos… Essas questões estão presentes em todas as democracias do mundo. Mas NÃO É LEGÍTIMO, sob o pretexto de ser justo e fazer a vontade da maioria, violar um princípio fundamental do ordenamento jurídico de uma sociedade democrática e de direito: a presunção da inocência. E é isso o que faz a tal Lei da Ficha Limpa.

É até possível, sim, que, uma vez aprovada, essa lei acabe impedindo a eleição de alguns larápios, embora, devo notar, boa parte dos que estão por aí e que infelicitam o Brasil não tenha nenhuma condenação em segunda instância, por um colegiado de juízes. Os bandidos mais sofisticados não costumam deixar rastros.


Atenção! O que me preocupa nessa votação — e antevejo, como escrevi ontem, que o placar será contrário à minha tese — é a violação do princípio. Mais uma vez, o STF tende a caminhar contra a letra explícita da lei para impor uma interpretação que estaria conforme às chamadas “aspirações da maioria”. Ora, desde quando maioria é critério de verdade? Um tribunal constitucional, se for preciso, tem de proteger a maioria de si mesma. Ouçam a voz das ruas! Não será difícil colher nas esquinas da vida opiniões contrárias até mesmo a tribunais de júri para acusados de homicídio. Falasse apenas a vontade do vulgo, adotar-se-iam linchamentos em vez de julgamentos.

Truque retórico de quinta categoria

Querem os ministros favoráveis à Lei da Ficha Limpa que a presunção de inocência vale apenas para o direito criminal. Bem, se for assim, então, no direito eleitoral, abrem-se as portas para quaisquer violações de direitos fundamentais em nome da “vontade da sociedade”. Dizem ainda esses ministros que a inelegibilidade de alguém condenado em segunda instância, por um colegiado, não é a aplicação antecipada de uma pena. Como não é? É, sim! Não é difícil evidenciá-lo. Querem ver?

Se o indivíduo tornado inelegível por um colegiado de juízes, em segunda instância, for inocentado depois, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, sabem o que acontece? ELE RECUPERA SEUS DIREITOS POLÍTICOS!!! Ora, e aquela inelegibilidade, então, tornada transitória, que o impediu de se candidatar? Foi ou não foi a aplicação de uma pena a inocente?

Muitos leitores e muitas vozes organizadas da sociedade pensam em alguns bandidos que estão na política e inferem: “Ah, depois do Ficha Limpa, isso não vai mais acontecer”. Uma boa pauta para os repórteres com tempo: TENTEM SABER QUAIS PARLAMENTARES ESTARIAM FORA DA VIDA PÚBLICA SE A LEI VALESSE NO PAÍS DESDE SEMPRE. Todos vão se surpreender. Pensem depois nos últimos malfeitores pegos com a mão na grana do povo… Tinha ficha limpa!!! O STF estará violando um princípio do estado de direito sem que se ganhe nada de muito relevante. Mas reitero: ainda que metade do Congresso estivesse inelegível, não é uma boa prática jurídica violar direitos fundamentais para se fazer Justiça.

Pensem um pouco: por que se elegeu justamente a segunda instância, o voto do colegiado, como a barreira? Pura arbitrariedade! Escolheu-se essa instância como se poderia ter escolhido outra qualquer. Se, amanhã, a “vontade da sociedade” indicar que basta a alguém ser processado para ser considerado inelegível, assim será.

Órgão de classe

Não bastasse essa questão de fundamento e de princípio, a Lei da Ficha Limpa torna inelegível também alguém que tenha sido punido por órgão de classe. Bem, meus caros, aí já estamos no terreno do escracho, do deboche. Pra começo de conversa, é evidente que se igualam, então, o colegiado do tal órgão de classe e o colegiado de juízes, certo? Um e outro podem tirar alguém da vida pública.

Ora, sabemos que os tais “órgãos de classe” são marcados, muitas vezes, por disputas políticas, pessoais, ideológicas. Bastará, então, que uma maioria desse colegiado profissional se junte para punir um eventual adversário interno tornado incômodo, e esse indivíduo estará inelegível!

Argumento ruim

Noto que mesmo os ministros favoráveis à Lei da Ficha Limpa não têm argumentos que justifiquem a sua tese. E, na falta deles, decidem recorrer à galera. Ouviram-se coisas preocupantes ontem e hoje no tribunal. Prestem atenção a uma fala do ministro Luiz Fux, por exemplo:

- “O tribunal não pode ser contramajoritário para ir contra a opinião da população. Evidentemente, que ela [a população] não nos pauta, mas temos que ouvi-la porque todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido”.

Porque as palavras fazem sentido, a fala do ministro não faz. Se a população não pauta, então, o tribunal, é evidente que ele pode, sim ser contramajotirário, ora essa! O povo é soberano na democracia, senhor ministro, mas a sua soberania não lhe permite, por exemplo, rasgar a Constituição.

Rosa Weber, a nova ministra, foi quem mais passeou por veredas assombrosas e assombradas. Afirmou, por exemplo:

- “Minha tranqüilidade é que a maioria sempre é sábia. Acompanho o voto do ministro Joaquim Barbosa.”

Na Itália e na Alemanha dos anos 30 do século passado, também se tinha por pacífico que a maioria era sábia.

- “O foco da inelegibilidade não é o indivíduo, mas a sociedade e a consolidação do estado de direito.”

É uma barbaridade! E se o “indivíduo” recuperar seus direitos políticos quando julgado no STJ ou no STF? Isso quereria dizer, ministra, que a “sociedade” estaria sendo, então, afrontada?

- “A Lei da Ficha Limpa foi gestada no ventre moralizante da sociedade brasileira.”

E daí? Se, amanhã, alguém propuser que se corte uma das mãos dos bandidos, a proposta terá saído do “ventre moralizante” da sociedade e, igualmente, pode expressar uma vontade da maioria.

Encerro

Sei que muita gente apóia essa lei porque entende que, assim, alguns vigaristas ficarão longe da vida pública. Pode acontecer num caso ou outro, mas o seu efeito prático beira a irrelevância quando se considera o valor que se está perdendo. Aprovada a Lei do Ficha Limpa, um princípio estará indo para o brejo. A partir daí, tudo passa a ser, então, possível.

Os que agora aplaudem a aprovação do Ficha Limpa no Supremo estão é colocando o próprio pescoço na guilhotina, feito aqueles que aplaudiram Robespierre quando começaram a rolar as primeiras cabeças.


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