Todo o destino de Napoleão Bonaparte está no seu cartão de visitas.
Ao
 passo que um J. B. Martins da Fonseca não tem nenhum destino especial e
 vou mais longe:  não tem destino.  Quando baptizaram William 
Shakespeare, o padre poderia perguntar-lhe:  "Como vão tuas Obras 
completas?".  No simples "William Shakespeare" estava implícita a música
 verbal do seu teatro.
Mas
 um certo nome exige uma certa cara.  Napoleão Bonaparte pedia um perfil
 napoleónico.  Um Gengis Khan precisa de fotogenia.  Ou então um John 
Kennedy.  O que era o presidente assassinado senão o queixo forte, 
plástico, histórico?  Ele venceu Stevenson e depois Nixon porque tinha 
as mandíbulas crispadas do Poder.  Por isso, o tiro arrancou-lhe o 
queixo.
Outro: 
 Churchill, com a sua maravilhosa cara de buldogue.  Em todos os 
citados, cara e nome, justapostos, explicam uma nítida pre-destinação. 
Fiz essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente.  Quando 
começou o jogo de candidaturas, disse eu:  "Ganha esse, pelo nome e pela
 cara".  Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu 
Médici.
Tiremos
 o Emílio e fica Garrastazu.  Tiremos o Garrastazu e ficará o Médici.  
Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e até 
delirante.  Não importa, nada importa.  Depois vi a sua fotografia.
Repeti,
 na redacção, para todo o mundo ouvir:  "É esse o presidente". Ora, numa
 redacção há sempre uns três ou quatro sarcásticos.  Um deles 
perguntou:  "Só pelo nome?".  Respondi:  "Pelo nome e pela cara".
Como
 já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E 
senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula, 
de selo.  Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos
 presidentes são baixos.  Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um 
perfil histórico e, digamos, cesariano.  Epitácio foi fisicamente 
pequeno.  Era a pose que o fazia mais presidencial.  Garrastazu Médici é
 o nosso primeiro presidente alto.
Dirão
 vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o 
fantasista. Desculpem o meu possível equívoco.  E se me perguntarem 
porque estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando:  conheci,
 domingo, o presidente Emílio Garrastazu Médici.  E o pretexto para o 
nosso encontro foi um jogo de futebol.
Outra
 singularidade do chefe da nação:  gosta de futebol e sabe viver, como o
 mais obscuro, o mais anónimo torcedor, todas as peripécias dos 
clássicos e das peladas.  Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito
 na história dos presidentes brasileiros.  Imaginem um Delfim Moreira, 
ou um Rodrigues Alves, ou um Wenceslau Brás entrando no estádio Mario 
Filho.
Qualquer um desses perguntaria:  "Em que time joga o Fla-Flu?", "Quem é a bola?" ou "O córner já chegou?".
O
 nosso presidente sabe tudo de futebol.  Eu diria que hoje nenhum 
brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o futebol.
Mas
 dizia eu que foi um jogo  - São Paulo X Porto -  que nos aproximou. Na 
sexta-feira passada, o Palácio das Laranjeiras começou por me procurar. 
Se eu fosse terrorista, não seria tão perseguido.  Finalmente, falo pelo
 telefone com o Palácio.  O secretário de Imprensa queria me transmitir 
um convite.  Onde e a que horas poderia falar comigo?  Marcamos o 
encontro.
Simplesmente,
 o presidente Médici me convidava para assistir, a seu lado, na 
inauguração do Morumbi, o jogo internacional.  Eu iria, com S. Exa., no 
avião presidencial.  O presidente fazia o maior empenho em que o 
acompanhasse.
Confesso,
 sem nenhuma vergonha, que o convite me fascinou.  O que têm sido as 
nossas relações com os presidentes da República?  Nada.  Sim, há entre 
nós e o presidente uma distância infinita, espectral.  E o Supremo 
Magistrado, como se diz, é um ser misterioso, inescrutável, sinistro. No
 meu caso, o presidente se dispunha a acabar com a distância e me 
receber na áspera solidão presidencial.
 De
 mais a mais, o Brasil vive o seu grande momento.  Eis o nosso dilema: o
 Brasil ou o caos.  O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do caos.
É
 o momento de fazer o Brasil ou perdê-lo.  Esse Garastazu Médici é, 
neste instante, uma das figuras vitais do país.  Eu ia vê-lo, ia 
ouvi-lo.
Sim,
 ouvir os ruídos da sua alma profunda.  Todo o mundo tem, no bolso do 
colete, o seu projecto de Brasil.  Garrastazu tem o seu e pode 
realizá-lo.
Ao
 passo que nós não temos força para tapar um cano furado.  Bem.  Aceitei
 o convite, ressalvando:  iria de tudo, menos de avião. "De automóvel?",
 perguntou o secretário de Imprensa.  E eu:  "De qualquer coisa"  - e 
repeti -  "nunca de avião".
Sábado,
 o meu filho Nelson levou-me para São Paulo no seu Fusca.  Durante a 
viagem, uma pequena mas intolerável inibição instalou-se em mim:
"Chamarei
 o presidente de 'excelência' ou simplesmente de 'senhor'?". Ao mesmo, 
imaginava que o Poder desumaniza o homem.  Seria Garrastazu uma figura 
áspera, hierática, enfática?  Pensava, ao mesmo tempo, num episódio 
recente.  No jogo do Grémio, e antes de ser presidente, e antes da 
definição das candidaturas, o general Garrastazu Médici desce ao 
vestiário.
Vejam
 se vocês conseguem imaginar um Delfim Moreira, ou um Epitácio num 
vestiário de futebol.  Pois o general chega e pergunta:  "Como é, 
Alcino, que você vai me perder aquele gol?".  No Fusca do meu filho 
Nelson, eu queria crer que um homem assim é um brasileiro vivo e não uma
 pose, e não uma casaca, e não uma faixa, e não uma condecoração.
No
 dia seguinte, estava eu no aeroporto.  Tivemos uma primeira conversa e,
 durante o dia, uma outra, e uma terceira, e uma quarta.  Vi a seu lado a
 inauguração (ou a décima inauguração do Morumbi).  Ora, no momento não 
há nada mais importante do que saber o que pensa, o que sente, o que 
imagina, o que quer um presidente da República, investido de tantos 
poderes.  No meio do jogo, ele insistia para que eu voltasse no seu 
jacto.  Digo, por fim:  "Está certo, presidente.  Vou voar pela primeira
 vez".
É
 preciso não esquecer o que houve nas ruas de São Paulo e dentro do 
Morumbi.  No estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de 
silêncio e, como dizia o outro, vaia-se até mulher nua.  Vi o Morumbi 
lotado, aplaudindo do presidente Garrastazu. Antes do jogo e depois do 
jogo, o aplauso das ruas.  Eu queria ouvir um assobio, sentir um foco de
 vaia.  Só palmas.  E eu me perguntava:  "E as vaias?  Onde estão as 
vaias?".  Estavam espantosamente mudas. Até Domingo, às seis e meia, 
sete da noite, eu não entrara jamais num avião pousado, num avião 
andando, num avião voando.  Lá em cima, não há paisagem;  e, se não há 
paisagem, estamos fazendo a antiviagem. Conversámos longamente.  Houve 
um momento em que ele me disse:  "Sou um presidente sem compromissos.  
Só tenho compromissos com a minha pátria".
Eis
 um homem que fala em pátria, em "minha pátria".  Para a maioria 
absoluta dos civis, "pátria" é uma palavra espectral, "patriota" é uma 
figura espectral.  E as nossas esquerdas fizeram toda a sorte de 
manifestações.  Não berravam, não tocavam na "pátria".  Nas passeatas, 
berravam, em cadência:  "Vietnã, Vietnã, Vietnã".  Pichavam os nossos 
muros com vivas aos vietcongs, a Cuba.  Nenhuma alusão à pátria, nenhuma
 referência ao Brasil.  E, no entanto, vejam vocês:  o Amazonas tem 
menos população do que Madureira.  Aquilo é uma gigantesca sibéria 
florestal. E as esquerdas só pensavam no Vietnã, e só pensavam pelo 
Vietnã e só bebiam pelo Vietnã.
Certa
 vez, conversei com um membro da esquerda católica.  Exortei-o a 
desembarcar no Brasil.  Disse-lhe que, na pior das hipóteses, temos 
paisagem.  Citei o Pão de Açucar, o Corcovado.  Mas ele batia na tecla 
obsessiva e fatal:  "O Vietnã, o Vietnã, o Vietnã" etc. etc.  Ainda no 
meu élan paisagístico, fiz a apologia da Vista Chinesa, recanto ideal 
para matar turista argentino.  Mas havia entre mim e ele a distância que
 nos separa do Sudeste Asiático.  Eis o que o meu amigo propõe:  que os 
brasileiros bebessem o sangue uns dos outros como groselha.
Antes
 de se despedir, o membro da esquerda católica concentrou sua ira nas 
Forças Armadas.  Acusou-as de incapazes, de ineptas, de relapsas.  "Os 
militares nunca fizeram nada", afirmou.  Desta vez, perdi a minha 
paciência.  Tratei de demonstrar-lhe que os militares fizeram tudo.  No 
Sete de Setembro (e Pedro Américo não me deixa mentir) foram sujeitos de
 esporas e penacho que deram o grito do Ipiranga;  e, se os militares 
não fizeram nada, que faz a espada de Deodoro na estátua de Deodoro?  
Foi a inépcia militar que fez a República, assim como fizera a 
independência.
Em
 22 e 24, era o sangue militar que jorrava como a água, a água da boca 
dos tritões de chafariz.  Em 30, em 32, em 35, foram os militares.  
Assim em 89.  Retirem as Forças Armadas e começará o caos, o puro, 
irresponsável e obtuso caos.
Há
 anos e anos que eu não digo "pátria".  E quando o presidente Garrastazu
 falou em "minha pátria", experimentei um sentimento intolerável de 
vergonha.  Esse soldado é de uma natureza simples e profunda.  Está 
disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Brasil.  Seja como 
for, deixará este nome, para sempre:  Emílio Garrastazu Médici."
Nelson Rodrigues
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