17 de mai. de 2011

O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT
     Oh, homens, que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais!
     Não conheceis a causa secreta disto que vos induz em erro.
     Meu coração e meu espírito sentiram-se, desde a infância, inclinados para o terno sentimento do carinho e sempre estive disposto a realizar generosas ações; mas considerai que desde há seis anos fui acometido de moléstia incurável, agravada ainda pela imperícia dos médicos. Iludido constantemente na esperança de uma melhora, fui forçado a enfrentar a realidade da rebeldia desse mal, cuja cura, se não for de todo impossível, durará anos talvez!
     De temperamento vivo e ardente, sensível mesmo às diversões da sociedade, vi-me obrigado a isolar-me numa vida solitária. Por vezes me quis colocar acima de tudo, mas fui então duramente repelido ao renovar a triste experiência da minha surdez! Não me era, contudo, possível dizer aos homens: "Falai mais alto, gritai! Pois eu estou surdo!" Como poderia eu alegar a fraqueza de um sentido que devia chegar em mim a um grau de perfeição mais elevado do que nos outros?
     Oh, homens, perdoai-me se me vedes afastar-me de vós!
     Minha desgraça me é duplamente penosa, pois, am do mais, faz com que eu seja mal julgado! Para mim já não há encanto na reunião dos homens, nem em conversas elevadas, nem desabafos íntimos; só a mais estrita necessidade me arrasta à sociedade; devo viver como um exilado; se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia pelo receio de que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano que passei no campo. Mas que humilhação quando, ao meu lado, alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutavam o canto do pastor e eu nada escutava!
     Estes incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse um fim à minha existência. a arte me amparou! Pareceu-me impossível deixar o mundo antes de haver produzido tudo o que eu sentia me haver sido confiado e assim prolonguei esta vida infeliz. Paciência é só o que aspiro até que as Parcas inclementes cortem o fio da minha triste vida. Melhorarei talvez, e talvez não! Mas terei coragem. Na minha idade, 28 anos, obrigado a filosofar não é fácil, e mais penoso se torna ainda para um artista. Meu Deus, sobre mim deita o teu olhar!
     Divindade, tu penetras do alto o fundo do meu coração, tu o conheces, tu sabes que o amor dos homens e o desejo de fazer o bem aí habitam!
     Oh, homens, se vos cair isto um dia debaixo dos olhos, vereis que me julgastes mal! O infeliz se consola quando encontra uma desgraça igual à sua; tudo fiz para merecer um 1ugar entre os artistas e entre os homens de bem.
     Peço-vos, meus irmãos Karl e Johanns, assim que eu fechar os olhos, se o Prof. Schmidt ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever minha moléstia, e juntar a isto que aqui escrevo, para que o mundo, depois de minha morte, se reconcilie comigo .
     Dec1aro-vos ambos herdeiros da minha pequena fortuna, reparti-a honestamente e ajudai-vos um ao outro . O que contra mim fizestes, de há muito, bem o sabeis, já vos perdoei. A ti, Karl, agradeço as provas de amizade que me deste ultimamente. Meu desejo é que seja tua vida menos dura que a minha. Recomendai a vossos filhos a virtude; e1a pode dar fe1icidade, e não o dinheiro, digo-o por experiência própria; só a virtude levantou-me da minha miséria; a e1a e a minha arte eu devo de não ter terminado por um suicídio os meus pobres dias.
     Oh, homens! Declaro-vos herdeiros de minha música, para vós a compus. Ouvi-a, pois e1a vos 1ivrará da angústia e vos dará a Paz.
     Adeus, e conservai-me vossa amizade. Minha gratidão a todos os meus amigos. Sentir-me-ei feliz se, debaixo da terra, ainda vos puder valer. Recebo com felicidade a morte. Se ela vier antes que realize tudo que me concede minha capacidade artística, apesar do meu cruel destino, virá cedo demais e eu a desejaria mais tardia; entretanto, ainda assim sentir-me-ei contente, pois ela me libertará de um tormento sem fim! Vem quando quiseres que corajosamente eu te enfrentarei!
     Adeus, e não se esqueçam inteiramente de mim na eternidade. Bem o mereço de vós, pois muitas vezes em vida preocupei-me convosco, querendo vos dar a fe1icidade. Sede felizes!
     Heiligenstadt, 6 de outubro de 1802
     (a) Ludwig van Beethoven 

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