4 de abr. de 2013

M É D I C I

Nelson Rodrigues

Não há nome intranscendente e repito:  qualquer nome insinua um vaticínio.

Todo o destino de Napoleão Bonaparte está no seu cartão de visitas.

Ao passo que um J. B. Martins da Fonseca não tem nenhum destino especial e vou mais longe:  não tem destino.  Quando baptizaram William Shakespeare, o padre poderia perguntar-lhe:  "Como vão tuas Obras completas?".  No simples "William Shakespeare" estava implícita a música verbal do seu teatro.

Mas um certo nome exige uma certa cara.  Napoleão Bonaparte pedia um perfil napoleónico.  Um Gengis Khan precisa de fotogenia.  Ou então um John Kennedy.  O que era o presidente assassinado senão o queixo forte, plástico, histórico?  Ele venceu Stevenson e depois Nixon porque tinha as mandíbulas crispadas do Poder.  Por isso, o tiro arrancou-lhe o queixo.

Outro:  Churchill, com a sua maravilhosa cara de buldogue.  Em todos os citados, cara e nome, justapostos, explicam uma nítida pre-destinação. Fiz essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente.  Quando começou o jogo de candidaturas, disse eu:  "Ganha esse, pelo nome e pela cara".  Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu Médici.

Tiremos o Emílio e fica Garrastazu.  Tiremos o Garrastazu e ficará o Médici.  Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e até delirante.  Não importa, nada importa.  Depois vi a sua fotografia.

Repeti, na redacção, para todo o mundo ouvir:  "É esse o presidente". Ora, numa redacção há sempre uns três ou quatro sarcásticos.  Um deles perguntou:  "Só pelo nome?".  Respondi:  "Pelo nome e pela cara".

Como já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula, de selo.  Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos presidentes são baixos.  Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um perfil histórico e, digamos, cesariano.  Epitácio foi fisicamente pequeno.  Era a pose que o fazia mais presidencial.  Garrastazu Médici é o nosso primeiro presidente alto.

Dirão vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o fantasista. Desculpem o meu possível equívoco.  E se me perguntarem porque estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando:  conheci, domingo, o presidente Emílio Garrastazu Médici.  E o pretexto para o nosso encontro foi um jogo de futebol.

Outra singularidade do chefe da nação:  gosta de futebol e sabe viver, como o mais obscuro, o mais anónimo torcedor, todas as peripécias dos clássicos e das peladas.  Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na história dos presidentes brasileiros.  Imaginem um Delfim Moreira, ou um Rodrigues Alves, ou um Wenceslau Brás entrando no estádio Mario Filho.


Qualquer um desses perguntaria:  "Em que time joga o Fla-Flu?", "Quem é a bola?" ou "O córner já chegou?".

O nosso presidente sabe tudo de futebol.  Eu diria que hoje nenhum brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o futebol.

Mas dizia eu que foi um jogo  - São Paulo X Porto -  que nos aproximou. Na sexta-feira passada, o Palácio das Laranjeiras começou por me procurar. Se eu fosse terrorista, não seria tão perseguido.  Finalmente, falo pelo telefone com o Palácio.  O secretário de Imprensa queria me transmitir um convite.  Onde e a que horas poderia falar comigo?  Marcamos o encontro.

Simplesmente, o presidente Médici me convidava para assistir, a seu lado, na inauguração do Morumbi, o jogo internacional.  Eu iria, com S. Exa., no avião presidencial.  O presidente fazia o maior empenho em que o acompanhasse.

Confesso, sem nenhuma vergonha, que o convite me fascinou.  O que têm sido as nossas relações com os presidentes da República?  Nada.  Sim, há entre nós e o presidente uma distância infinita, espectral.  E o Supremo Magistrado, como se diz, é um ser misterioso, inescrutável, sinistro. No meu caso, o presidente se dispunha a acabar com a distância e me receber na áspera solidão presidencial.

 De mais a mais, o Brasil vive o seu grande momento.  Eis o nosso dilema: o Brasil ou o caos.  O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do caos.

É o momento de fazer o Brasil ou perdê-lo.  Esse Garastazu Médici é, neste instante, uma das figuras vitais do país.  Eu ia vê-lo, ia ouvi-lo.

Sim, ouvir os ruídos da sua alma profunda.  Todo o mundo tem, no bolso do colete, o seu projecto de Brasil.  Garrastazu tem o seu e pode realizá-lo.

Ao passo que nós não temos força para tapar um cano furado.  Bem.  Aceitei o convite, ressalvando:  iria de tudo, menos de avião. "De automóvel?", perguntou o secretário de Imprensa.  E eu:  "De qualquer coisa"  - e repeti -  "nunca de avião".

Sábado, o meu filho Nelson levou-me para São Paulo no seu Fusca.  Durante a viagem, uma pequena mas intolerável inibição instalou-se em mim:

"Chamarei o presidente de 'excelência' ou simplesmente de 'senhor'?". Ao mesmo, imaginava que o Poder desumaniza o homem.  Seria Garrastazu uma figura áspera, hierática, enfática?  Pensava, ao mesmo tempo, num episódio recente.  No jogo do Grémio, e antes de ser presidente, e antes da definição das candidaturas, o general Garrastazu Médici desce ao vestiário.

Vejam se vocês conseguem imaginar um Delfim Moreira, ou um Epitácio num vestiário de futebol.  Pois o general chega e pergunta:  "Como é, Alcino, que você vai me perder aquele gol?".  No Fusca do meu filho Nelson, eu queria crer que um homem assim é um brasileiro vivo e não uma pose, e não uma casaca, e não uma faixa, e não uma condecoração.

No dia seguinte, estava eu no aeroporto.  Tivemos uma primeira conversa e, durante o dia, uma outra, e uma terceira, e uma quarta.  Vi a seu lado a inauguração (ou a décima inauguração do Morumbi).  Ora, no momento não há nada mais importante do que saber o que pensa, o que sente, o que imagina, o que quer um presidente da República, investido de tantos poderes.  No meio do jogo, ele insistia para que eu voltasse no seu jacto.  Digo, por fim:  "Está certo, presidente.  Vou voar pela primeira vez".

É preciso não esquecer o que houve nas ruas de São Paulo e dentro do Morumbi.  No estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, como dizia o outro, vaia-se até mulher nua.  Vi o Morumbi lotado, aplaudindo do presidente Garrastazu. Antes do jogo e depois do jogo, o aplauso das ruas.  Eu queria ouvir um assobio, sentir um foco de vaia.  Só palmas.  E eu me perguntava:  "E as vaias?  Onde estão as vaias?".  Estavam espantosamente mudas. Até Domingo, às seis e meia, sete da noite, eu não entrara jamais num avião pousado, num avião andando, num avião voando.  Lá em cima, não há paisagem;  e, se não há paisagem, estamos fazendo a antiviagem. Conversámos longamente.  Houve um momento em que ele me disse:  "Sou um presidente sem compromissos.  Só tenho compromissos com a minha pátria".

Eis um homem que fala em pátria, em "minha pátria".  Para a maioria absoluta dos civis, "pátria" é uma palavra espectral, "patriota" é uma figura espectral.  E as nossas esquerdas fizeram toda a sorte de manifestações.  Não berravam, não tocavam na "pátria".  Nas passeatas, berravam, em cadência:  "Vietnã, Vietnã, Vietnã".  Pichavam os nossos muros com vivas aos vietcongs, a Cuba.  Nenhuma alusão à pátria, nenhuma referência ao Brasil.  E, no entanto, vejam vocês:  o Amazonas tem menos população do que Madureira.  Aquilo é uma gigantesca sibéria florestal. E as esquerdas só pensavam no Vietnã, e só pensavam pelo Vietnã e só bebiam pelo Vietnã.

Certa vez, conversei com um membro da esquerda católica.  Exortei-o a desembarcar no Brasil.  Disse-lhe que, na pior das hipóteses, temos paisagem.  Citei o Pão de Açucar, o Corcovado.  Mas ele batia na tecla obsessiva e fatal:  "O Vietnã, o Vietnã, o Vietnã" etc. etc.  Ainda no meu élan paisagístico, fiz a apologia da Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista argentino.  Mas havia entre mim e ele a distância que nos separa do Sudeste Asiático.  Eis o que o meu amigo propõe:  que os brasileiros bebessem o sangue uns dos outros como groselha.

Antes de se despedir, o membro da esquerda católica concentrou sua ira nas Forças Armadas.  Acusou-as de incapazes, de ineptas, de relapsas.  "Os militares nunca fizeram nada", afirmou.  Desta vez, perdi a minha paciência.  Tratei de demonstrar-lhe que os militares fizeram tudo.  No Sete de Setembro (e Pedro Américo não me deixa mentir) foram sujeitos de esporas e penacho que deram o grito do Ipiranga;  e, se os militares não fizeram nada, que faz a espada de Deodoro na estátua de Deodoro?  Foi a inépcia militar que fez a República, assim como fizera a independência.

Em 22 e 24, era o sangue militar que jorrava como a água, a água da boca dos tritões de chafariz.  Em 30, em 32, em 35, foram os militares.  Assim em 89.  Retirem as Forças Armadas e começará o caos, o puro, irresponsável e obtuso caos.

Há anos e anos que eu não digo "pátria".  E quando o presidente Garrastazu falou em "minha pátria", experimentei um sentimento intolerável de vergonha.  Esse soldado é de uma natureza simples e profunda.  Está disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Brasil.  Seja como for, deixará este nome, para sempre:  Emílio Garrastazu Médici."

Nelson Rodrigues



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